Hoje a senhora Jacinta está sentadinha, a ver o bom tempo, a ver o sol, o azulinho do céu. Hoje seria um daqueles dias que ela se vestia de uma maneira qualquer e saia de casa com um sorriso, só porque estava sol, e calor. Hoje pouco importa o tempo, o dia-a-dia da Dona Jacinta já é uma repetição, apenas hoje ela está a recordar a sua juventude.
Tantas e tantas vezes preferiu deitar-se na cama a chorar do que sair casa fora e ir passear. Hoje arrepende-se, porque hoje, hoje sim ela tem tempo para chorar dos maus amores. Já não tem pernas boas para saltar, correr e muito menos dançar, que tanto gosta mas nunca aprendeu (hoje arrependesse).
Recorda os maus amores hoje. Maus, não que dizer que tenham sido maus. Mas acabaram e ela vê o mau aí. Nunca reparou que o que amou não foi nada comparando a dor depois de acabado. Recorda ouvindo Amália, a dor. Ela recorda a dor… dos namoros terminados, dos jovens que acabaram com ela e hoje são casados e não são felizes, dos namoros que ela acabou por ter sido traída mais que uma vez, os namoros que não tiveram amor. E sorri, sorri porque já passou e ela ainda recorda, a lágrima ainda caí. Talvez possa, na verdade, significar alguma coisa, que ela amou? [talvez..]
A verdade é que hoje, hoje, hoje, ela está sozinha. A ver o tempo… as nuvens… sentada, já não se aguenta de pé, está sozinha.
Então recorda os momentos bons… de quando andava ás cavalitas do paizinho. De quando a mãezinha ainda existia, era cabeleireira diz-se, o pai não sei. Era raro andarem os três juntos, mas a dona Jacinta aparecia muitas vez ou com um ou com outro, e havia um irmão também, mas nunca ninguém viu os dois, se calhar morreu, ou apenas não se dão. A verdade é que a Dona Jacinta ficou sozinha (sem pai nem mãe) muito nova, tinha 21 quando a mãe morreu, o pai tinha 11 anos a mais que a mãe mas viveu mais 3. Diz-se que aquilo era uma família muito unida, o pai vivia para a mãe e a mãe sem ser o cabeleireiro também vivia para o pai, nunca tinham visitas nem nada, à quem se justifique do cão ser mau, mas mesmo depois de ele morrer ninguém lá ia a casa!
O pai gostava muito da filha, do filho como já se disse nunca se ouviu falar, e vinham muitas vezes os dois juntos ao café.
Jacinta não foi aos funerais, comentou-se durante muitos anos isso, e duvidou-se do amor que a filha tinha pelos pais, só por não ter ido ao cemitério que estupidez.
Mas Jacinta estava a pensar em coisas boas. Nas suas paixões, Jacinta apaixonava-se loucamente, quase sempre à primeira vista.
Da primeira paixão, só me lembro que quando me apaixonei ele estava a jogar à bola e eu disse “estou apaixonada!” e as minhas amigas riram-se e foram a correr dizer ao rapaz. Nunca me esforcei muito para ter qualquer coisa com ele, basicamente um “olá” dele chegava, e lembro-me que não foi um “olá” mas um “oi” tinha chegado a moda do “oi” e eu não gostei muito do “oi”. Era um motivo de andar com um sorriso, isso chegava. Mais tarde uma das minhas amigas namorou com ele. Já eu gostava de outro, um nazareno, meu deus, o rapaz mais mentiroso que alguma vez conheci, digo isto com um sorriso, ele ligava-me e falávamos tardes inteiras sobre mentiras da parte dele, vim a descobrir mais tarde, o que também não interessava para nada, o irmão dele e a mãe eram capazes de gostar mais de mim que ele, apesar de demorar algum tempo não deu em nada, foram apenas alguns encontros cómicos, muito cómicos. De resto eram conversas e mensagens por telemóvel, ainda não se falava muito de Internet.
Mas fartei-me das mentiras todas dele e num dia para o outro esqueci-o e como me disseram uma vez “amor por amor se paga” e assim foi. Mais cedo ou mais tarde apareceu outro que só depois de estar apaixonada por ele é que me confessou que tinha namorada, mais tarde acabou com ela, este era louco, andava de mota sem carta para vir ter comigo, todos os dias vinha ter comigo, gostei muito dele, apesar de nunca lhe demonstrar o quanto. Mas lá se foi também para um amor de infância, que eu até dei uma mãozinha para que a coisa se desse (nem sei como fui capaz, mas aguentei). Na noite de natal apareceu outro, estava a beber vinho tinto, quando um olhar me chama e caiu-me tudo aos pés, eram assim as expressões da altura, que ridículo. As mentiras contadas aos pais, (que erro, mas bom), quando os pais iam de férias e levava o namorado a casa, quando fugia da janela (de um 3 andar), a viagem que fiz a Barcelona e os papas a pensarem que eu estava para Taizé. As mentiras que no fim era sempre quase apanhada. Todos eles eram diferentes como é obvio mas… impressão minha ou não, o que vinha trazia coisinhas de todos os outros. Lembro-me que adorava abraços, agora deixei-me disso, sou uma velha gorda nem os netos imaginários me quereriam abraçar. Tive muitos rapazes, nunca namorei com nenhum até a mãe morrer. Gostava da paixão, da força, do desejo, do inicio. Depois quando se tornava repetitivo, dizia que já não gostava dele, e arranjava maneira para estragar tudo, tornando-me muito má, fingia mesmo uma personagem em mim para que eles fossem embora. Apenas mandei um embora, o que melhor me tratou, o que melhor soube gostar de mim, o melhor que me respeitou, esse tive que mandá-lo embora, sem motivo. Sempre sem motivo. E nunca fechei a “porta” a nenhum. Não sei fechar portas, por isso é que os tenho que mandar embora, é por isso que hoje estou sozinha, mandei-os todos embora. Não por não gostar deles, apenas não sei amar, à quem diga que é o medo. Dizem que prefiro não ter para não perder. Depois da mãezinha morrer ganhei juízo, teve que ser, eu é que tratava da casa e do paizinho. Deixei de estudar, por um tempo fui modelo, mas como o paizinho não podia pagar tudo fui para actriz de filmes pornográficos, e foi aí que perdi a virgindade. Até o pai morrer. Depois, fui acabar o meu curso, e comecei a ganhar bem, comprei a minha casinha e as minhas coisinhas. Foi aí que pensei que tinha aparecido o meu príncipe, mas eu não sabia amar, nunca soube. Então mandei-o embora, disse para ir, que o odiava (quando o amava), dizia para se ir embora (quando queria que ele me abraçasse), então ele fartou-se e foi só mais um que se foi embora… não fico feliz, eu amava-o, como a quase todos os outros, nunca fui daquelas de dar beijinhos sem sentimento, nunca fiz o amor com ninguém, não por não o amar, apenas queria que entendessem o valor disso. tanto prazer sexual que podia ter tido, agora sou uma velha, tanto que podia ter feito. Agora sou eu e os meus fantasmas, mais nada… as amigas que disseram que vinham baloiçar-me nestas alturas de solidão não estão. Se ao menos eu soubesse falar e na altura certa ter feito o que devia ter feito… o tempo não volta atrás. A todos os rapazes que me aturaram, se não disse tudo o que tinha a dizer foi porque não me souberam ouvir no silencio. Foi esse o problema… [digo eu] mas, como se ama? Ainda vou a tempo de amar? Inventam tudo, porque não inventam a maneira de amar? Amar não, que amar é fácil, é dizer o que o outro pretende ouvir e seguir adiante com isso, [isto hoje em dia] eu quero a paixão forte, aquela que me fazia ficar com o coração a mil, aquela que me fez cometer loucuras, como se faz para ela não ir embora?
Foi a ultima coisa que Jacinta escrevera no seu portátil. No seu funeral, estavam poucas pessoas, apenas 7, dizem que são amigos de infância, e o irmão, o irmão com a família dele. A musica que se ouviu no funeral dizem que fora um pedido dela deixado no portátil, é uma musica do Rui Veloso [nunca ouvi falar], qual não sei. Disseram que fora o seu grande amor que cantara uma vez. Deixou dinheiro ao advogado para escrever na sua campa um poema.
“Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam, é a dor dos que ficaram para trás, é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades, passar pela vida e não viver. O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.” Pablo Neruda
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